segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

24 de janeiro

E agora que é seu aniversário?
Como é que eu vou passar esse 24 de janeiro, sem poder ligar, sem ficar indecisa quanto ao seu presente? Um livro, uma camisa pólo ou um vinho?. Nos últimos anos nem podia mais ser vinho, né, pai? Podia ser uma coisa bem diferente, fotos dos meninos, como aquelas que eu dei uma vez no Natal. Ou foi de aniversário mesmo?
Eu gostava de escolher.
É a primeira vez que eu vou passar o seu aniversário com raiva, chateada, triste. Eu não consigo aceitar que o senhor tenha ido embora tão cedo. Quando eu penso que esse ano o senhor ainda ia fazer 68 anos me dá uma revolta tão grande, porque tem tanta gente ruim que vive mais, tanta gente que não ajuda ninguém, que maltrata as pessoas, gente escrota. Aí justamente o senhor morre.
Não era pra ser assim. Eu fico louca aqui pensando que se Deus existe e quis levar o senhor pra perto dele, se é que existe um lugar perto dele, é porque ele teve motivos. Mas minha revolta é tão grande que eu não consigo engolir isso direito.
Queria ter 100% de fé e de certeza que o senhor ta bem, que encontrou amigos aí, que encontrou seus pais, seus irmãos, que eles foram lhe receber; que o senhor ta livre de todo o desconforto que o câncer lhe dava, que não tem mais soluço, nem falta de ar, que o senhor consegue conversar direitinho, que consegue andar, sentar, levantar. Que nada dói, que as mãos e os pés não formigam.
Aqui estava tudo tão difícil, pai. Quando eu soube que o senhor não conseguiu caminhar direito no sítio me partiu o coração, como me partiu o coração ter que lhe ajudar a levantar, lhe levar pro banheiro, dar sua comida na boca.
Pai, eu lembro tanto e tão nitidamente daquela sexta-feira. Eu sei o cheiro do quarto, eu sei o cheiro da sua mão, sei o cheiro da sua cabeça que eu beijei tanto naquele dia. Sei o cheiro daquela sopa de feijão que o senhor comeu só um pouquinho, daquela sopa de macarrão que o senhor tentou comer. Só duas colheradas, não quis mais. Eu pensando que era só porque estava insossa e com raiva de mim porque saí de casa pensando em levar um sal na bolsa pra melhorar o gosto da comida do hospital.
Eu hoje passei duas vezes na frente do Hospital São Marcos e toda vez que eu passo lá, toda vez que eu passar lá eu vou lembrar do senhor. De tudo, desde os primeiros dias, as primeiras consultas, aquelas dúvidas todas que a gente teve, daquele dia que recebemos os primeiros exames e eu corri pra cá pra pesquisar o que era mesmo neoplasia. Eu lhe disse que era câncer, mas que não tinha motivo pra se preocupar, porque câncer tinha tratamento, e tava no início, e que o senhor ia ficar bom logo. Depois que o senhor foi pra casa eu chorei, li tudo o que eu consegui sobre essa doença escrota. Nos outros dias li mais, procurei mais, até que fui me tranqüilizando porque eu sabia que não era pra eu ter medo naquele tempo.
Mas aí a coisa foi crescendo, e a cada novo exame, a cada nova consulta eu ficava tensa. Nas cirurgias eu fiquei tão mal...Mas o senhor foi danado e foi só melhorando, melhorando. Quem dizia que tava doente? Ninguém!
Lembrei hoje daquele dia que o enfermeiro moreno, aquele careca, lhe levou pro ambulatório do São Marcos na cadeira de rodas, porque o senhor tava meio sedado. O senhor não queria ir de jeito nenhum, ficou tão constrangido, não queria que ninguém lhe visse daquele jeito. Eu quis poder fazer alguma coisa, mas só lhe dei a mão e fomos com o enfermeiro, saindo do hospital, passando pela rampa, atravessando a rua, o senhor de cabeça baixa e eu calada. Naquele dia eu lhe achei frágil, mas nem era. Que força danada que o senhor teve nesses quase quatro anos.
Eu lhe achei frágil outras vezes, mas o senhor não podia saber. Claro que não. Que pai pode ser frágil na frente da sua menina mais velha, do seu xodó, da sua filhota?
Claro que não.
Nós fomos tão cúmplices. Eu contrabandeei comida pro hospital, macarrão, picadinho, chocolate, panqueca, sorvete, purê de batata, pastel, iogurte. Se o senhor não queria comer aquela comida horrível, claro que eu ia resolver isso. Quem precisava saber? Eu faria tudo de novo.
Eu faria qualquer coisa que fizesse o senhor se sentir melhor.
Queria que o senhor visse a minha casa agora, reformamos, ta toda bonitinha, como a gente queria fazer, o dinheiro nunca dava. E se não fosse o senhor a gente não teria nem conseguido comprar. Eu já agradeci o suficiente? Pela casa, pelo carro, por todas as ajudas, todos os socorros do meu banco particular?
É uma pena que não é só isso que faz falta. Se fosse seria tão fácil de resolver.
Me faz falta é conversar, é ligar pro senhor de noite e contar o dia, ficar cansada de lhe ouvir falar, reclamar do estômago embrulhando, das mãos formigando, do soluço. Eu penso tanto em lhe ligar, muitas, muitas vezes eu chego aqui e penso em fazer o jantar e depois ir lhe ligar, pra falar qualquer coisa, falar mal da mamãe, do jornal, contar uma gracinha da Sabrina, do Coco, alguma coisa do Eduardo na maçonaria.
Como é que eu posso ir lá pro sítio? Claro que eu tento, mas fico sempre esperando a hora que o senhor vai buzinar pra alguém abrir o portão, e vai tirar o seu isopor cheio de comida de dentro do carro. Eita medo danado de morrer de fome e sede nessa estrada Timon-Caxias. Era pedaço de queijo, pedaço de bolo, rapadura, pão, petisco pras meninas, castanha, um vinho gelado, cerveja.
São pedacinhos seus que me vêm à cabeça, tão nítidos, tão detalhados que parece que tem alguém ‘soprando’ histórias pra mim.
Agora eu fico aqui lembrando de tantas conversas, das brigas, das minhas aprontações, dos meus sumiços, dos meus namorados que nunca eram bons, das dores de cabeça que eu lhe dei. E apesar de todas essas dores de cabeça, eu nunca senti que o seu amor por mim mudou, ou diminuiu, ou se feriu. Em 34 anos que eu pude estar ao seu lado, as coisas ruins que aconteceram não são nada, né?
24 de janeiro...E eu ainda tinha tanta coisa pra lhe dizer, pra lhe mostrar, pra lhe dar.